sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Jogos para o Projeto Mwarusi - Apenas um Jogo

Conheci João Pedro Torres no Laboratório de Jogos 2013. Já naquele ano, ele jogou conosco, pelo menos, o larp Boa Noite Queridinhas - e acredito que também Ouça no Volume Máximo. Na edição 2014 do evento, esteve conosco em Álcool, do Luiz Prado, e no Morte Branca, na primeira aplicação realizada pelo Boi Voador.

Em 2017, João foi selecionado pela Girl Move Foundation - ONG com o objetivo de combater a pobreza por meio da educação das mulheres - como designer de jogos para atuar no Projeto Mwarusi. Segundo ele, a experiência de jogar Morte Branca teve papel fundamental na seleção - perguntaram a ele qual foi sua experiência de jogo mais transformadora e significativa.

Em Moçambique, passou 40 dias trabalhando com uma equipe em um programa educativo destinado às meninas da região, as mwarusi, para lidar com questões relativas a sexualidade, abandono dos estudos e identidade - e claro, muitas questões relacionadas aos problemas e às habilidades a serem desenvolvidas, conforme detectados em relatório desenvolvido pela ONG em 2016.

Sobre essa meta, Torres não garantiu que o jogo iria desenvolver as habilidades pretendidas, mas poderia criar um espaço seguro para esse desenvolvimento. Para ele "educação não é mais transmitir conhecimento, mas explorar temas junto dos educandos".

Essa foi a primeira experiência do autor trabalhado diretamente com a criação de larps e live games, e ainda por cima em um projeto educativo. Ele conta que deve que lidar com as vicissitudes da equipe, incluindo interesses flutuantes dos líderes, redirecionamento de projetos no meio do caminho e demandas inusitadas: quadrinhos, jogos de lutas, teatro do oprimido... Mas estes detalhes nós vamos deixar para descobrir no encontro, certo?

E jogar os jogos, é claro!


SET/ Jogos para o Projeto Mwarusi 
dia 24 de setembro, domingo - 14h00 / Sala de Convenções Pequena

O Apenas um Jogo de setembro recebe o arquiteto e game-designer João Pedro Torres. No encontro, ele contará sobre sua experiência em Moçambique desenvolvendo jogos para a ONG Girl Move, num trabalho de conscientização e sensibilização com meninas em idade escolar - tendo em vista a grande evasão escolar e a situação de vulnerabilidade social desse grupo na região - além, é claro, de realizar alguns desses jogos com os participantes.

Aberto para todos os públicos.

link: evento no site do Sesc
link: evento no facebook

um dos vídeos do projeto sobre o larp Namorado (Problema do Namorado/ Um Namorado para Mwarusi). 

João Pedro Torres é arquiteto e game designer, atuando na intersecção entre RPGs, larps, card games e jogos de tabuleiro. Autor de Massa Crítica (finalista no Concurso Faça Você Mesmo, da Secular Games, em 2013), O Jogo de Cartas do Amor (vencedor da edição brasileira do Game Chef em 2014) e Sertão Bravio. Em 2017 trabalhou com a equipe da ONG Girl Move, em Moçambique, na elaboração dos jogos que constituem o programa do projeto Mwarusi (vencedor do Dreams Innovation Challenge, financiado pelo U.S. President’s Emergency Plan for AIDS Relief).



O Apenas um Jogo de setembro no Sesc Itaquera ainda se relaciona com outra programação desse mês na unidade, o Florescer nas Margens - que busca dar visibilidade e, por consequência, valorizar aquilo que está à margem: pessoas e grupos que nela vivem, movimentos que dela florescem e iniciativas e ideias inspiradoras que dela surgem.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

MORTE BRANCA: A METÁFORA DA VIDA – Notas sobre uma experiência sensível

Em agosto, realizei na programação Apenas um Jogo do Sesc Itaquera o larp Morte Branca. Paloma Neves, uma das jogadoras, escreveu-me um relato a respeito e permitiu que eu o publicasse. Segue na íntegra. E na sequência, links para outros relatos da experiência, escritos por outros participantes.


Guest Post - Paloma Neves


No dia 27 de agosto de 2017, estivemos reunidos no  Espaço de Tecnologias e Artes do SESC Itaquera, para realizar o Larp “Morte Branca” de Nina Runa Essendrop [e Simon Steen Hansen].  

O jogo em questão estabelece dois momentos: workshop e aplicação (que é a rodada propriamente dita). Seres Humanos:  uma sociedade “ancestral” (primeiros colonos), vivem no topo de uma montanha, este é o território ocupado, sob a neve e o frio intenso. Criaturas Brancas: seres celestiais que ocupam outra dimensão, anjos da neve, coexistem com os humanos, mas não podem relacionar-se com eles. É proibida a fala em ambos os universos. 

Seres humanos e criaturas brancas não se articulam através das palavras, a estrutura rígida de “Morte Branca” estabelece uma experiência corporal, onde toda a expressão e os meios de construção da narrativa, entre os jogadores, se dão na chave da linguagem não verbal.

As regras do jogo impõem restrições físicas rígidas e intensas aos corpos dos jogadores: “ímãs com polos opostos entre pés e mãos”, “pés e mãos atados, uns aos outros, com elásticos”...  Os seres humanos, assim como na vida real, são plenos de limitações que os impedem de sentir prazer nas pequenas coisas, limitações que geram frustrações e insatisfações consigo mesmo, limitações que implicam na necessidade de auto-proteção, mas que resultam em hostilidade no trato com as outras pessoas.  

Além dos limites físicos, o jogo fornece a cada ser humano um conflito comportamental: “pessoas com a cor da pele diferente da sua não são confiáveis”, “pessoas com cabelo curto são mais fracas”, “pessoas com cor de cabelo diferente da sua são inferiores”... Nada de incomum, se pensarmos nas relações humanas, na história da "evolução" humana, na sociologia. Todas essas condições comportamentais são gatilhos potentes, criam animosidade, desconfianças e instauram uma atmosfera densa de sentimentos mesquinhos.

As criaturas brancas são o oposto dos seres humanos: são leves, são amorosas, são felizes e tentam salvar os Seres Humanos de seus sofrimentos, de suas redomas de vidro. Como não ocupam o mesmo espaço físico que os seres humanos e a estrutura do jogo exige a ausência da linguagem verbal, criaturas brancas tem poder nulo de intervenção sobre os conflitos humanos.

Há ainda a presença de quatro elementos plenos em simbolismo: SONHO (balões de ar), SOBREVIVÊNCIA (açúcar), FÉ (folhas de papel em branco) e, algo que nomearei como “TRANSCENDÊNCIA” (fita de cetim). Estes elementos eram inseridos no jogo, pouco a pouco, em momentos rigorosamente estabelecidos no roteiro de ação do Larp. As relações que os jogadores, enquanto Seres Humanos, estabeleciam com estes quatro elementos intensificavam, ainda mais, o conflitos com os outros Seres Humanos.

Assim como na vida real, sonho trazia leveza e alegria, apesar de seu caráter efêmero. Sobrevivência, simbolizada por um alimento, que também funcionava como riqueza, como moeda de troca e meio de opressão e dominação: assim como na vida real, a luta por sobrevivência faz despertar tudo aquilo que é instinto, na forma mais bruta. , tal qual na vida real, para quem acredita é motivadora e para quem não acredita, gera total apatia e desprezo contra quem tem fé. E a transcendência que, com o pesar mais niilista do mundo, ouso chamar de suicídio: decisão irreversível, capaz de por fim na extrema exaustão que é encarar, infinitas vezes, o sofrimento de permanecer vivo.

Mergulhei na experiência proposta em Morte Branca com total intensidade. Ter usado um repertório de ferramentas do ofício do ator, que há muito deixei para trás, construindo meu personagem Ser Humano com um norte de método stanislavskiano, talvez não tenha sido a melhor das ideias. Minhas restrições impostas pelo jogo eram um corpo-marionete, cuja movimentação deveria partir de linhas guias nos joelho, punhos e cotovelos... Além de ter como "quesito moralizante" a condição de que pessoas com cor da pele diferente da minha não eram confiáveis.

O acaso me trouxe exatamente meus conflitos existenciais, que carrego comigo em minha vida real: corpo marionete (sinto, muitas vezes que sou uma pessoa totalmente manipulável, frágil, como alguém que não conduz a própria vida, mas que é conduzido, que está sob o julgo de outrem) e, para estreitar laços com a minha realidade: eu era a única menina quase negra, numa sala repleta de gente branca; "pessoas de pele com cor diferente da sua não são confiáveis" automaticamente se transformou em "não se pode confiar em absolutamente ninguém".

Construir uma vivência mais semelhante à minha própria relação com a vida do que esta, seria impossível. Somando a tudo isto o empréstimo de meu próprio repertório emocional, aos quatro elementos: para SONHOS empreguei meu sonho real; à SOBREVIVÊNCIA, minha generosidade em doar e receber, mesmo em condição de escassez, lutando e empregando toda a minha força, de maneira obstinada, a garantir que todos tivessem acesso livre ao mínimo para manterem-se vivos; à FÉ, uma total insegurança, fruto de minha relação íntima com o verbo acreditar, em contraponto ao misto de curiosidade e admiração por quem é capaz de manter a esperança; e à TRANSCENDÊNCIA: meu último suspiro, debilitado, exausto pela longa trajetória, num desabrochar reconfortante da desistência, que resulta em solene liberdade.

A experiência compartilhada no acontecimento do jogo serviu-me como um espaço para redescobrir a mim mesma. Como um lampejo e uma chance de pensar em mim e na minha relação com o mundo, num plano onírico, onde o lúdico se desdobra em potencialidade de raciocínio diante do real.

"Morte Branca" é um Larp que questiona a vida, as limitações humanas, os conflitos consigo e com o meio... É sobre esgotamento, sobre a existência, sobre a vida em sociedade. É um olhar reflexivo sobre o homem e seu meio.