terça-feira, 7 de novembro de 2017

ILHA DAS BRUXAS: Sobre todas as vezes que queimaram uma pilha de pessoas

A edição do Apenas um Jogo de outubro foi o larp Ilha das Bruxas - adaptação na qual trabalhei com André Sarturi do larp Terra dos Pecados e da Peça Bruxas de Salém (de Arthur Miller), temas desenvolvidos na sua pesquisa de mestrado em 2011 e 2012.

O desafio foi condensar em apenas algumas horas a experiência dividida primeiro em 10 encontros, depois em 5, realizada durante a pesquisa de mestrado dele na UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarna, em Florianópolis. Somou-se a isso uma curiosidade maior pela "caça às bruxas" em relação ao larp de referência - e na investigação de mecanismos para promover a epidemia de acusações como uma meta de design.

A partir do cruzamento de nossas experiências, minha e do Sarturi, criamos um jogo novo - experimentado pela primeira vez no dia 28 de outubro (às vésperas do Dia das Bruxas) por nove participantes. Sobre a experiência, um dos jogadores escreveu o relato abaixo, intitulado Sobre todas as vezes que queimaram uma pilha de pessoas.

Guest Post - Chris Alexsander Martins 


Enquanto Maria, a lavadeira cujos braços atrofiados esfregavam toda a roupa suja da Ilha das Bruxas, pude ouvir o som da fogueira enquanto esperava atrás das grades.

Eu olhava para o Pastor Antônio no fundo dos olhos. Era recíproco. Sua boca quase não mexia mesmo dizendo todas as palavras da Bíblia: ela só deixava um rastro constante de dureza, de firmeza devastadora. Mesmo sentada ao fundo do Tribunal do Santo Ofício, eu via a determinação cega do Pastor emanando raiva, enquanto o Inquisitor ao seu lado ditava as regras do espaço (acho que lhe faltava roupas para ficar grande).

A ruiva, toquei a mão dela. Sabia que ela seria a primeira, desde quando tive o sonho com todos os homens gritando nos seus ouvidos BRUXA. Mas a achei corajosa, mesmo sabendo que estava mentindo sobre ser bruxa: era bastante seca com o Pastor, quando abria a boca era para falar algo importante. Assumiu e levou mais dois, os caçadores que mais latiam que mordiam, gritantes desnecessários dum ambiente supostamente harmônico, e a devota.

Ela se foi. De cabelos pretos, era impossível que ela fosse morta. Mas nem mesmo as palavras de Deus a salvaram, mesmo sendo tão crente em seu ato. Eu sei disso, conheço a velha desde nova. Crescemos quase juntas, a única velha que fala coisa com coisa naquele lugar. Foi levada.


Aos prantos eu caminhei atrás pedindo a Deus que nos protegesse de todo o mal. Subiu no palanque junto de outro a ser enforcado. Tinha pouca gente para ver ela morrer, poucos se importavam talvez, mesmo sendo a matriarca: é triste perceber ao fim da vida que você só não é importante, para ninguém. Olhei no fundo de seus olhos, mais fundo ainda que o próprio Pastor, e pude ver a confiança em Deus, a devoção, censuradores das lágrimas antes do último suspiro. Apenas acabou. Foi tão rápido, mas acabou. Nem para o tempo sua vida teve importância.

Subi na cadeira e contei minha história. Talvez ela também fosse a daquelas outras que estavam comigo na mesma cela, esperando a brisa fria ser deixada pelas chamas da fogueira. Ela queimava os corpos de várias outras mulheres que um dia gritaram de ódio. Mas estava ali assim como a ruiva: exterminei a origem de toda injustiça em nosso terreno, matei a filha do infeliz Pastor Antônio. E é gratificante recitar isso aos ouvidos de Deus.

Fui pra casa. Queria ter lavado minhas mãos na água fria.

Esse larp me fez pensar na possibilidade de conversar e sentir toda essa ofensiva aos direitos humanos naturalizada pelo mundo. Falar sobre a fogueira é falar sobre nossa história e não dá para negar o que ela faz com nossos corpos. Os meninos avançando, as meninas separadas em bruxa, em algum lugar sinto que até mesmo a subversão pelas meninas do outro jogo são marcas de nosso tempo. Num larp aparecem as coisas da vida de cada um, compartilhadas.

Achei um texto legal esses dias que fala sobre normalidade e diferença. A primeira apenas existe, é o que está no meio de todos, quase como o que estrutura, tudo que é normal não dá para ser exatamente designado, é algo maior. A diferença é exatamente o que não é considerado normal, por isso inclusive é apontada, já que ainda por cima existem muitos diferentes dentro da diferença. Acho que esse larp tem potência para isso, ver essa violência injusta posta nos corpos e nos discursos do Tribunal. Não sei se faltam heróis, não sei se faltam vilões, mas não duvido que o massacre de Salém deve ter sido decidido numa reunião daquelas.

Muito obrigado pelo jogo, não sou bom com o nome de todas as pessoas, mas agradecimento especial ao Luiz Falcão e ao André Sarturi, organizadores e provocadores do jogo. Espero por mais sessões desse ou de outros jogos.




Mais sobre ilha das bruxas:
- De volta à Ilha das Bruxas
- Um pouco mais sobre o larp Ilha das Bruxas (breve)

Mais sobre Apenas um Jogo:
- Apenas um Jogo
- Programação do primeiro semestre (2017)
- Apenas um Jogo de Agosto
- Apenas um Jogo de Setembro

Mais sobre André Sarturi:
- Visita à unicamp


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