domingo, 28 de fevereiro de 2016

Jogos e cultura, o preconceito persiste?

O texto a seguir foi produzido como parte das avaliações do curso A Complexidade do Sensível: um paralelo entre vídeo games e arte (Coursera - Unicamp, ministrado por Julia Stateri, Doutoranda, e Edson do Prado Pfutzenreuter, Prof. Dr., ambos do Instituto de Artes - Departamento de Artes Visuais). Está publicado neste blog com a data original, mas foi aqui acrescentado no dia 19 de maio de 2017.

Resolvi publicá-lo porque ele condensa parte de minha pesquisa a respeito das relações entre artes, jogos, RPG e larp, que ainda carecem de publicações referenciáveis - estando até hoje pulverizadas em discussões pela internet, anotações e palestras cujos registros foram perdidos.



A questão que ele responde é a seguinte

Com base nos conteúdos apresentados [referenciado na resposta], tanto na videoaula, quanto no texto do professor Roger Tavares, vocês acreditam que a resistência dos jogos serem vistos como parte da cultura ainda persiste? Por quais razões?

Sim, persiste.

Para mim, a razão mais forte é a apontada pelo professor Roger Tavares no artigo "Mi-mi-mi meus jogos não são cultura, eu não sou culto": os criadores, produtores, assim como os jogadores, não os identificam como cultura.

Não faltam argumentos teóricos que justifiquem o ponto de vista, mas enquanto público e produtores não se identificarem com o tema, não haverá ampla aceitação. Parte dessa recusa ou desinteresse dos envolvidos com jogos reconhecerem seu próprio lugar na cultura está relacionado com a velha polarização alta cultura X baixa cultura, popular x erudito. A identificação da palavra "cultura" como meramente um status, uma "tag" de elitização.

Parece faltar, primeiro, a estes agentes (produtores e jogadores) compreensão de que os jogos se tratam de peças culturais.

Parece haver também certo saudosismo, senão instinto de preservação nesse meio. Ao identificar os jogos como "apenas entretenimento" e repudiar o "status" de bem cultural, esses agentes parecem também querer manter longe dessa mídia determinados aspectos, temas e assuntos.

Sobre este tópico eu gosto sempre de citar Scott McCloud. Em sua trilogia teórica sobre quadrinhos -  em formato de quadrinhos! - ele nos conta uma anedota envolvendo o quadrinista Will Eisner. Segundo McCloud, Eisner defendia que os quadrinhos eram uma forma de arte. Certa vez, um colega de profissão se enfureceu com ele: somos vaudevilistas, não artistas!


Também David Cage, diretor dos games Indigo Prophecy, Heavy Rain e Beyon: Two Souls, da francesa Quantic Dreams apontou o mesmo problema, dessa vez especificamente sobre os jogos eletrônicos. No manifesto "A Síndrome de Peter Pan: A indústria que se recusa a crescer" (em inglês) ele problematiza a questão das temáticas e abordagens lançando desafios como "fazer jogos sem armas", "trocar a lógica dos desafios pela da jornada" e abordar temas com a mesma seriedade que séries e filmes o fazem.

A questão da "seriedade" e da identificação da linguagem com o público infantil não é novidade. Johan Huizinga já a aborda em Homo Ludens, de 1938, que os jogos são considerados "não-sérios", o que segundo ele seria um grande equívoco. (O jogo, para Huizinga, não se opõe a seriedade). A cultura, para o pensamento geral, seria uma coisa "séria, de adultos", enquanto o jogo seria "não-sério, de crianças". Este trabalho do autor é praticamente todo dedicado a desconstrução desse mito.

Na história da crítica de jogos, Huizinga é seguido por Roger Caillois , com Os Homens e os Jogos, de 1957. Mas na prática, os escritos dessa linha parecem interessar muito menos aos envolvidos em games - produtores e jogadores - do que o estudo focado especificamente em Game Design, com ares pesadamente mais industriais. Corrente esta que podemos ilustrar com a publicação Rules of Play, de Katie Salen Tekinbaş e Eric Zimmerman, mas que possui inúmeros outros representantes. Essa bibliografia, muito mais funcionalista, frequentemente se foca nas etapas de criação de um jogo e assume critérios de avaliação e legitimidade relacionados ao sucesso comercial desses produtos, deixando muitas vezes suas capacidades expressivas, quando muito, em segundo plano. (Aqui vale dizer e é curioso observar que Eric Zimmerman, mesmo sendo um dos principais representantes dessa linha teórica é hoje um dos produtores de games com maior visibilidade a se lançarem a experimentação da interface entre games e arte).

Apesar da resistência, o caminho para esse reconhecimento parece estar sendo bem pavimentado, seja por teóricos, seja pelos próprios produtores - ainda em sua maioria os produtores independentes. É provável que os jogos encontrem trajetória parecida com a dos quadrinhos: esse reconhecimento veio embasado pelas obras disponíveis na prateleiras, como pode-se observar hoje em qualquer livraria do Brasil e nos catálogos até mesmo das grandes editoras. A produção mudou. Antes eles eram associados apenas ao público infantil e as histórias de super-heróis, hoje é possível encontrar uma grande variedade de obras maduras, para os mais diversos públicos, que nada devem a grandes clássicos da literatura - alguns sendo inclusive eles mesmos considerados grandes clássicos da literatura. É o caso de Maus, de Art Spiegelman, que foi premiado com o pulitzer.

Na medida em que a produção de jogos avança para novos territórios, abre-se caminhos sobre eles. O reconhecimento dos jogos, eletrônicos ou não, como uma forma de cultura - e porque não, de arte - me parece necessariamente ligado ao amadurecimento de suas temáticas e abordagens, o que já está em curso, com excelentes representantes, e passa pela aceitação de produtores e público de que esses temas são bem vindos.